Dança (a três tempos)

I
Colocada a máscara dum mago ou
mecenas que, sem mágoa,
adivinhasse sementes, grãos, gotas e
correntes de poemas
crescendo na coreografia do Tempo e no
compasso da História,
resumiste o passado a rimas de
fechada compreensão,
tingiste de tinta permanente o perdão e
secaste a cascata da nossa glória.
Esquecidos os sentidos e
esquecidas as sensações,
tropeçámos em ruidosas acusações.
Quebrámos depois num silêncio possante,
próximo, colossal, tenso.
Gélidos perante um inverno de afectos que
não mostrámos, exaustos nos rendemos.

II

Golpeadas, jaziam mortas as asas da
esperança, e eis que surge viva,
crescente, forte, a memória.
Ao lembrar, em uníssono, uma velha dança,
de novo nos encaixamos em abraços.
Olho o teu rosto, roubo-te um sorriso e
procuro com as minhas mãos a
curva dos teus braços.
Da amnésia da linguagem ao súbito juízo:
-Ouve! Saltamos rumo ao ausente?
-Mas quando? Agora?
-Vamos, pois! É chegada a hora.
O abismo. A vertigem na impulsão a dois.
E ao tombar, salvos, no chão, tombamos
na revelação que é cristalino e é nosso…
O momento. O segundo andamento.
Isto é o presente. Fosse assim para sempre.

III

E se… Já crentes na Bíblia do movimento,
nos elevássemos uma e outra e outra vez, e
planássemos sobre o reino do vivido…Vês?
Não crês que, na voracidade do olhar, na
honestidade do sentimento e na
simplicidade corpórea do odor, pressentiríamos
o futuro a ler em arrebatadas e
copiosas gotas de suor?
Nada dirias. E sabendo eu o quanto diz o nada
nos lábios dos amantes, avançaria, louco:
-E se dançássemos um pouco?
Em queda cega, desabarias:
-Nós nunca dançaremos como dantes.
E eu cairia.
E como que ao cair, caísses em mim, clamarias:
-Sim! Dançaremos, sim. Dançaremos hoje e até ao…
…Fim.